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Diversificar as capacidades

Se nunca frequentou um curso superior, vai reparar que o âmbito de um curso superior é muito diferente de tudo o que teve anteriormente. O curso superior encaminha-o para ser um pouco mais especializado num certo domínio. Com a conclusão do curso, fica com uma forma de reconhecimento perante a sociedade das suas aptidões nesse mesmo domínio. No entanto, não se deve restringir a isso. É essencial diversificar as suas capacidades.

Uma dissertação de mestrado é um passo mais além. Até aqui, nunca tinha de pensar nas perguntas que tem de fazer e só então responder. Para qualquer outra disciplina, toda a matéria que tinha de saber era ensinada e estava muito bem definida. Nos testes, limitava-se a replicar esse conhecimento. Era pedido que respondesse algo dentro de um conjunto de perguntas/respostas para as quais o professor já tinha tudo estabelecido. Durante uma tese, não existe esta estrutura. O leitor não sabe se aquilo que acha que é suficiente é realmente suficiente. Não sabe o que quer saber. E depois, quando finalmente tem a certeza do que quer saber, tem ainda de descobrir a resposta por si mesmo.

As capacidades ganhas durante o trabalho na tese de mestrado vão muito além da nota que irá obter no fim. Irá aprender a redigir texto científico, cujas características são diferentes das da ficção e do romance, por exemplo. Ganhar práticas de trabalho autónomo. Aprender a abordar um problema complexo sem solução à vista, decompo-lo em problemas mais pequenos, simples o suficiente para os resolver. A própria capacidade de resolver problemas que se desenvolve durante esta fase é muito importante para qualquer carreira que se escolha no futuro. Quer siga a academia ou opte pelo mundo empresarial existirão problemas altamente abstractos que necessitam das suas melhores capacidades.

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Os problemas de hoje

Apesar de um dos efeitos secundários da leitura deste blog ser a melhoria das notas na faculdade, o seu foco principal não é esse. As notas não são tudo. De facto, elas representam marginalmente as suas verdadeiras aptidões. Por outro lado, as notas estão sim relacionadas, em boa parte, com a sua capacidade de trabalho, consistência e dedicação. No entanto, o essencial aqui é aprender. E nem sempre o ter boas notas está relacionado com aprendizagem.

O mundo exige-nos agora uma boa transversalidade de conhecimentos. Acabou o tempo do tipo que só sabe apertar parafusos e do outro que só sabe enroscar lâmpadas. Hoje é o dia em que é preciso enroscar lâmpadas apertadas com parafusos. É necessário saber de muitos e diferentes tópicos. A meu ver, a segmentação rígida das áreas do saber tem os dias contados.

As máquinas dotadas de alguma inteligência vão eliminar cada vez mais postos de trabalho a nível mundial [1]. É assim necessário que o leitor se diferencie dos trabalhos que uma inteligência artificial possa executar. Estas máquinas imperam apenas em domínios com estruturas estáveis e onde as regras sejam totalmente conhecidas. Para isso, estes automatismos só podem ser aplicados em contextos suficientemente “estreitos”.

Segundo a psicóloga Ellen Winner, não existe um único savant que tenha revolucionado a sua área [2]. Os savants são pessoas com uma aptidão natural de desenvolverem capacidades excepcionais num só domínio, em que a sua habilidade aí é desproporcionadamente maior do que em qualquer outra área. Se a especialização e trabalho super-focado num só domínio fosse o segredo para o sucesso criativo, então estas pessoas seriam as mais promissoras para o atingir. Só que não.

No livro Range, David Epstein argumenta essa hipótese. A hipótese de que são os generalistas que triunfam num mundo especializado [3]. Quando a hiper-especialização é combinada com domínio em que as regras não estão inteiramente claras e onde as mudanças são rápidas e sem aviso os resultados são desastrosos. O mundo não é apenas executar pautas musicais nem apenas seguir receitas (algoritmos específicos). Nesses casos o feedback sobre a sua execução é imediata e geralmente claro. Diversificar as capacidades torna-se assim o segredo. O mundo é como jogar ténis Marciano, diz Robin Hogarth:

Vemos toda a gente com raquetes e bolas nas mãos, mas ninguém sabe as regras.


Escolher, experimentar, repetir

Os problemas que os quais nos deparamos durante a nossa actividade profissional, e em geral na vida, não estão segmentados, muito menos etiquetados com a devida área de conhecimento. Existem sim problemas, no geral. Esses problemas requerem uma panóplia vasta de conhecimentos, técnicas e ferramentas para os resolver. Devemos ser realmente bons, muito bons, numa ou noutra área – que serão as nossas competências mestras. No entanto, temos de ter bons conhecimentos numa diversidade imensa de outras áreas para pelo menos entender um problema nessas outras áreas e pensar de outras perspectivas.

Grande parte da vida é feita de resolver problemas. Sejam eles no contexto profissional ou pessoal. Numa vida suficientemente estimulante, o leitor vai estar constantemente a resolver problemas e a ultrapassar obstáculos, tanto impostos por si próprio como os que são circunstanciais. E, para quando estes surgirem, vai querer estar preparado o melhor que pode.

Atentamente,
André

Referências:
[1] – https://www.dn.pt/lusa/interior/automacao-vai-reduzir-240-mil-postos-de-trabalho-na-zona-centro-em-10-anos—estudo-10784116.html (visto a 07/07/19)
[2] – Winner, E. (1999). Gifted children: Myths and realities. New York: BasicBooks.
[3] – Epstein, D. (2019). Range. Penguin USA.