Todos somos irracionais, e tu também!
Será que ao integrarmos completamente o nosso lado irracional, conseguimos pensar melhor?
Desde Platão e Aristóteles que a tendência do pensamento humano é ser mais objectivo, mais racional. Isto é, conseguir desligar totalmente as nossas emoções e a sua capacidade de intervirem nas nossas decisões. Apesar de nunca o termos atingido, continuamos a projectar elaborados raciocínios lógicos na tentativa de explicar o nosso comportamento irracional, normalmente em jeito de retrospectiva. O grande objectivo de um racionalista será encontrar a verdade – a verdadeira realidade do mundo – que um simples humano apenas poderá entender através de modelos. A questão é: e essa verdade absoluta, existirá mesmo?
Neste artigo proponho uma alternativa. Em vez de se tentar atingir patamares cada vez maiores (e impossíveis) de racionalidade, admitir, em primeiro lugar, que nunca lá chegaremos. E em segundo, enfrentar e integrar o nosso lado irracional.
Irracionalidade nas ideias
Mas se somos assim tão irracionais como é que alguma vez nos vamos entender? Quando um engenheiro desenha uma ponte, ela não pode apenas parecer segura, ela tem de ser segura. Por um lado, temos uma estrutura de pensamento totalmente racional e por outro, uma estrutura mais ligada às emoções. Bem, o truque estará relacionado com esse facto. Conseguirmos ganhar a habilidade de trocar entre um modo de pensar e outro é uma grande mais-valia para decisões mais acertadas.
Assim, seremos capazes de tomar decisões sabendo que as outras pessoas não irão fazer aquilo que é racional, que não têm toda a informação disponível, que têm motivações que nem elas próprias entendem. Conseguir pensar de um modo intuitivo e de um modo racional a nosso belo prazer é desbloquear um entendimento único sobre o mundo. Sempre presente as fragilidades de cada um dos modos pensar. Conseguir fazer esta transição e ponderar hipóteses de uma perspectiva e de outra é um modelo mental tremendamente útil para um processo de decisão aprimorado.
Nas estratégias
Imagina que tens uma solução para salvar um dos grandes problemas da humanidade (por exemplo uma pandemia). Pensaste bem no assunto, tecnicamente a solução resolve os problemas e todos os efeitos negativos identificados e mitigados. É necessário agora implementar o plano. Para isso é preciso mudar mentalidades, convencer decisores políticos, ou até líderes religiosos. Se fores como um racionalista típico, com uma visão estreita sobre o assunto, vais pensar: “A minha ideia é a melhor solução, ela deve vender-se sozinha”. Bem, não é bem assim.
Uma das pessoas mais conhecidas que enfrentou este tipo de desafios, Bill Gates, tem visto diversos dos seus grandes projectos barrados por falhar na parte emocional, social, intuitiva. Um génio no que está relacionado com a racionalidade e com o encontrar soluções engenhosas para problemas técnicos, viu os seus planos serem retidos devido à parte irracional da humanidade. No documentário da Netflix de Bill Gates (Inside Bill’s Brain: Decoding Bill Gates), vemos alguns dos seus projectos ligados à fundação Bill & Melinda Gates a terem um desfecho menos agradável.

A erradicação da pólio
Por volta de 2008 a fundação decidiu que iria erradicar o vírus da pólio do mundo, começando com o caso específico da Nigéria. A tecnologia e a ciência existem, seria apenas necessário um esforço de coordenação para fazer chegar as vacinas e a informação a quem precisava. Pouco tempo depois das campanhas começarem, rumores surgiam. Os líderes religiosos entendiam esta actividade como uma maneira de esterilizar as crianças e atribuíam-lhe um traço de holocausto moderno. O problema não era claramente racionalizável. Os receios infundados da população fizeram os casos voltar a aumentar e os surtos a reaparecer. Quem tem a capacidade de se articular bem nos dois níveis, sabe que mesmo que a sua ideia seja muito boa, se não conseguir ter em conta os instintos do subconsciente destas pessoas, todos os esforços são inadequados.
O lado emotivo do ser humano é crucial para atribuir significado à sua própria existência.
Após algumas conversações com os líderes religiosos, conseguiram levantar as falsas impressões que se tinham formado à volta do projecto. O esforço retomava, e faziam chegar novamente as vacinas a quem mais precisava. No entanto, em 2010, um ataque a uma prisão no norte da Nigéria libertou mais de 700 reclusos, incluindo 150 pertencentes ao grupo terrorista Boko Haram [1]. Foi desde esse evento que muitas das aldeias e povoações nigerianas ficaram reféns destes grupos extremistas, impossibilitando o acesso de voluntários. Isto tornou-se mais um dos entraves para erradicar o vírus da pólio. Mais uma vez, não por questões técnicas, mas por questões políticas e sociais.
Um dos golpes mais pesados neste esforço pela erradicação da pólio aconteceu em 2012 em Karachi, Paquistão. Vários voluntários foram mortos na rua, friamente. Uma das vítimas era uma rapariga de 17 anos [2]. É impossível conseguir racionalizar a motivação por trás de tamanha atrocidade. Mas este tipo de situações não deixa de existir, e para conseguirmos minimizar os efeitos nefastos é crucial conseguir mudar de um modo de pensar para outro.
O factor emotivo naquilo que não controlamos é o grande determinante do sucesso ou insucesso dos nossos planos. No entanto, não deve ser visto como um aspecto da natureza humana que tem de desaparecer. O lado emotivo do ser humano é crucial para atribuir significado à sua existência. Se todos perdermos esse lado, a diferença entre nós e as máquinas será ainda menor.
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Nas decisões
Por mais que racionalizemos as nossas decisões e as decisões dos outros, essas foram quase sempre tomadas primeiro de um modo inconsciente pela nossa intuição. Mesmo quando ponderamos tomar uma acção ou não, com cada nova informação que surge, quem decide é em grande parte o nosso instinto. Grande parte dos raciocínios lógicos que temos são narrativas que contamos a nós próprios para explicar uma decisão, fenómeno ou resultado.

Não acreditas que funciona assim? Vamos imaginar o seguinte: Estás a escolher um restaurante na zona para ir jantar. Procuras na internet ou nalguma app uma lista de restaurantes com as respetivas classificações e críticas de outros utilizadores. Qual é a definição de uma classificação que te faça escolher um restaurante e não outro? Classificação de 4,2 em 5 é suficiente? Porque não 4,6?
Apesar de achares que deliberaste conscientemente qual era a classificação aceitável, na verdade isso nunca aconteceu. A escolha de votação foi muito mais influenciada por todos os factores que influenciam a tua intuição do que pela razão. Se fosses uma pessoa inteiramente racional, que decidia exclusivamente com os dados disponíveis, diria antes de ver qualquer uma das opções: “Escolho o restaurante que tiver classificação superior a 4.5 e estiver o mais perto de mim”. E ficaria assim. Se não houvessem resultados, a opção racional seria provavelmente não ir jantar fora de todo (faria sentido sermos completamente racionais deste modo?).
Entretanto, como na pesquisa foste influenciado pelo nome do restaurante, pela localização, pela tua fome ou pelas imagens dos pratos, a tua racionalização vai ser só posterior à decisão (intuitiva) que tomaste. Podes racionalizar a decisão depois, em estilo “já ouvi este nome em algum lado, deve ser bom”. Isto é a memória a pregar partidas. Após algum tempo de pesquisa em que todos têm classificação miserável, “3,5 em 5 é bom o suficiente”, ou como quem diz, “estou cheio de fome, vou com o primeiro que aparecer que não tenha baratas.”
Uma mente distribuída
Neste momento podemos ficar divididos, deveremos largar a parte emocional e focar inteiramente na parte racional ou não? Eu digo que não. Por mais racionais que queiramos ser, os nossos sentidos e emoções estão também ligados à nossa capacidade de decidir. Não estamos a deixar de ser humanos quando dependemos das emoções e da intuição. António Damásio, famoso neurocientista português, afirma que é isso mesmo o que nos torna humanos. Existe uma inerente simbiose entre cérebro, corpo e mente.[3][4]
“A natureza parece ter construído o aparelho da racionalidade não só sobre o aparelho da regulação biológica, mas também a partir dele e com ele.”
Para completar esta ideia de ligação entre emoção e sentimento com a razão, estudos recentes consideram que a nossa flora intestinal é como se fosse um segundo cérebro e o tipo de micróbios que a compõe determina em grande parte as nossas emoções, comportamentos e capacidade de decidir.

“Há muito que se supõe uma ligação entre a microbiota intestinal e o cérebro, mas, nas últimas décadas, começaram a ser feitos estudos que relatam os efeitos causais da microbiota intestinal no nosso cérebro e no nosso comportamento, e os mecanismos moleculares subjacentes começaram a ser elucidados. “
Existe uma forte evidência de que o funcionamento do nosso cérebro e o nosso comportamento estão relacionados com o tipo de micróbios que habitam o nosso sistema digestivo. Ou seja, além de estendermos aquilo que entendemos como sendo o “eu”, ao incluir estes seres, também alimentamos a ideia de que a nossa mente pode estar distribuída pelo nosso corpo, e não apenas centrada no nosso cérebro como se pensava até agora. [5]
Em resumo…
A visão clássica de que o caminho privilegiado da intelectualidade é povoado apenas por estruturas lógicas e racionais, sequenciais e deduzidas umas das outras, está a ser posta à prova pela necessidade prática de se saber pensar intuitivamente.
Conseguir integrar o nosso lado irracional é saber que as decisões que tomamos com fome, com sono, depois de uma discussão forte, são propensas a estarem seriamente enviesadas e que as devemos evitar tomar nessas circunstâncias. No entanto, é saber que não devemos descartar de todo essas emoções, devemos explorá-las e entender porque é ocorrem, e que efeitos é que elas têm nos outros.
É também conseguir criarem-se os hábitos que permitam contornar os efeitos adversos que elas possam tomar, de um modo automático. Conseguir automatizar a resposta para que mesmo durante uma discussão acalorada sobre um tema delicado, o resultado é o mais satisfatório possível em qualquer situação.
Atentamente,
André
Referências
[1] https://www.theguardian.com/world/2010/sep/08/muslim-extremists-escape-nigeria-prison
[2] https://www.theguardian.com/world/2012/dec/18/polio-vaccination-workers-shot-pakistan
[3] https://www.comunidadeculturaearte.com/antonio-damasio-o-neurocientista-das-emocoes/
[4] “Descartes’ Error”, pág. 128, Damásio, A.
[5] https://www.nature.com/articles/d42859-019-00021-3
Revisto por João Carlos
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